A justiça nas mãos da <i>troika</i>?
O novo ataque ao sistema judicial, centrado agora no projecto de encerramento de tribunais, é uma (conveniente) encomenda da troika. Não por acaso, a primeira notícia que saiu, em finais de Janeiro, sobre o chamado «Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária», assinalava que o documento já tinha sido entregue à troika. Isto diz quase tudo.
Trata-se, aqui também, da lógica do abate dos serviços públicos. E, considerando a Justiça mais um serviço público, se não dá lucro fecha, se não há doentes, ou alunos, ou cidadãos, ou melhor, se não há Utentes, simplesmente, fecha-se o serviço.
Mas, a Justiça não é um serviço público, é uma função de soberania.
Por isso, seria a nosso ver simplista e errado pensar que, no caso da Justiça, e neste caso da reorganização judiciária (não desligável nem desligada de outras reformas, feitas ou em gestação), estão apenas, ou sobretudo, razões economicistas. Não, as razões são muito mais fundas e prendem-se com a própria soberania e independência do poder judicial.
Não são razões novas, mas, não por acaso, cabem no espírito e objectivos do pacto de agressão.
E traduzem-se no seguinte: reduzir as funções do Estado também nesta área – retirar querelas dos tribunais, desjudicializando, numa linha de maior privatização da Justiça; colocar os tribunais ao serviço da economia, como dizem, ou seja, ao serviço dos grandes interesses económicos; pôr os tribunais a aplicar as leis contra os trabalhadores; colocar os tribunais ao serviço da impunidade dos poderosos.
E com isso justificam a necessidade de, rapidamente, despachar processos, libertar os tribunais, reduzir tribunais.
Aqui um parêntesis, para dizer que o que se está a congeminar, quando se começa a falar de negociação das penas, é a possibilidade de negociar penas e até acusações envolvendo juízes e Ministério Público, para tudo abranger, como há quem defenda, na área criminal, incluindo, claro está, a criminalidade económica.
O que, obviamente, converge com a ideia de fugir às audiências e julgar nos gabinetes, ao sabor da pressão, da chantagem e do interesse do mais forte.
Reformas fracassadas
Na área da Justiça, não se ignora, há muitos bloqueios e problemas, que se arrastam sem solução, que precisam ser resolvidos, como o nosso Partido tem denunciado e para os quais tem avançado soluções.
Só para dar um exemplo, nos tribunais de trabalho, o número de processos pendentes caminha rapidamente para os 80 mil – processos por despedimento, encerramentos, acidentes de trabalho, cortes e salários em atraso – um aumento sem precedentes. Em vez de mais tribunais e juízos de trabalho, como propusemos, fecharam juízos e retiraram magistrados. Foi essa a reforma que fizeram.
Efectivamente não têm faltado reformas na Justiça. Todas, ou quase todas, reformas falhadas.
A primeira grande reforma foi em 2003, com a privatização da acção executiva, para cobrança de dívidas. Dez anos passados, revelou-se um enorme falhanço.
Em 2004, foi a privatização do Notariado. Hoje, há dezenas de notários falidos que querem voltar à Função pública.
A terceira, que implicou elevados custos, foi a entrega, há três anos, do controlo do apoio judiciário à Ordem dos Advogados. Um desastre, como temos visto.
Têm sido, todas elas, reformas fracassadas, que não foram feitas a pensar nos cidadãos. Mas que os cidadãos tiveram que pagar, no valor de muitos milhões de euros.
Voltando ao Novo mapa, esta é mais uma reforma que ensaiam e que avançam sem tirar ilações da última experiência negativa, a do Mapa Judiciário do PS.
Reforma que não chegou a ser concretizada, senão em três comarcas piloto, e sem sequer ter havido uma avaliação formal, que de resto só podia ser negativa, tal como nós dissemos e prevenimos. O que dessa experiência resultou foi um afastamento maior das populações aos tribunais.
E esta seguirá o mesmo caminho, se não for travada.
O documento chamado Ensaio
Com a nova estrutura, de apenas 20 comarcas e secções especializadas dispersas pelas comarcas antigas que não fecharem, até conseguem arranjar cerca de 300 juízes, 80 magistrados do MP e 400 funcionários judiciais sem posto fixo de trabalho, que ficam na condição de itinerantes, integrados em equipas com a missão de correr o País a recuperar processos pendentes, o que, no caso dos juízes pode vir a ser, em vários aspectos (juiz natural, inamovibilidade) inconstitucional.
Face à crescente desprotecção na defesa de direitos económicos e sociais dos trabalhadores e das populações, cabe perguntar: onde ficam os tribunais, onde ficam os juízes?
Face ao aumento da criminalidade e a insegurança das pessoas, onde fica o Ministério Público?
Como se atrevem a esvaziar as localidades dos órgãos jurisdicionais, além do mais agravando a desertificação do interior?
O documento, chamado Ensaio, prevê o encerramento de 47 Tribunais, nas duas Regiões autónomas e em 17 dos 18 Distritos do Continente (Porto é a excepção).
Os tribunais a encerrar situam-se sobretudo no interior, Trás-os-Montes, Beiras, mas não só, em concelhos cujas autarquias têm maioria PSD (24), PS (20), CDU (2) e Independentes (1).
É quase certo que este projecto em letra de forma, ou seja Proposta de lei, não estará pronto antes de Junho, Julho.
A ministra, hábil, abriu um processo de auscultação das autarquias.
Tudo indica que poderá haver recuos, desde logo porque em muitos casos se constata que os critérios do estudo feito na secretaria nem sequer colam com a realidade, como por exemplo o das instalações degradadas, prevendo o fecho do tribunal de Cabeceiras, inaugurado há três anos e que custou três milhões de euros, ou os critérios do mínimo dos 250 processos, ou da pequena distância da comarca mais próxima, e que se verifica, no terreno, não serem verdadeiros.
Mas não se pode descansar – o sentido geral, o objectivo de fundo, não será abandonado.
Toda a argumentação usada contra o outro mapa judiciário deve servir para este, com as devidas adaptações.
É preciso ir às causas e rejeitar critérios fabricados nas costas das populações, rejeitando imposições.
O critério que se impõe defender é o de que a Justiça deve estar onde estão as populações e não apenas ao sabor da procura e oferta.
Como em outras áreas, temos que lutar para que não prevaleça uma visão economicista para os problemas da Justiça.
Não podemos permitir que qualquer tribunal seja encerrado, ou transformado em mero balcão de atendimento.
É preciso que a voz das populações se faça ouvir, através das mais diversas formas.
E é importante convocar os profissionais da Justiça, para que, individualmente e através das suas estruturas representativas, associações jurídicas, sindicatos, etc., se pronunciem e se associem à luta em defesa de uma Justiça mais pronta e mais próxima das populações.